CONTOS NOVAS LETRAS II
Com tudo o que está acontecendo no país, chegamos ao final dessa etapa no projeto NOVAS LETRAS.
O Brasil vive uma pandemia, uma mortandade. Vemos pessoas próximas morrendo. Temos medo de morrer. Temos medo de ficar doentes e não ter assistência. O sistema de saúde está em colapso. Essa é uma das palavras que mais ouvimos nos últimos dias: Colapso.
À margem desse grande tragédia que acontece no mundo todo, seguimos com a oficina, discutindo literatura, trabalhando processos de escrita. É uma válvula de escape. É um lugar para estar. A turma II da NOVAS LETRAS apresentou universos surpreendentes. Entramos nas histórias e ficamos emocionados com narrativas sensíveis, enérgicas.
Os contos dessa nova turma NOVAS LETRAS II foram escritos a
partir de um tema proposto : "Pela oficina: Entre o Céu e o Chão, entre eu e o
outro – Limites de tudo aquilo que é impalpável e presente."
Os contos também estão disponíveis em áudio em plataformas de streaming como Spotify e Google Podcast. Basta procurar "NOVAS LETRAS".
A seguir seguem os textos apresentados conforme ordem, apresentando o título do conto e o autor/autora:
CONTOS NOVAS LETRAS II
Bolinhas de Sabão – Raimundo Moura
A redescoberta da paz – Nathália Fernandes
Amor com cuidado – Miriam Martinez
Penitência – Thiago Siqueira
Era pra ser apenas mais um fim
de semana – Rosália da Silva
Olhos verdes – Luiza Pereira
Um novo olhar – Íris Chaves
Amor sem Barreiras – Ubirajara
Lemos
BOLINHAS DE SABÃO
De
Raimundo Moura
A primeira que fiz uma bolinha
de sabão, eu ainda estava bem pequenininho. Elas pareciam mágicas. Até então
era a coisa mais bonita que eu já tinha visto no mundo.
Tudo era muito simples;
bastava uma velha caneca de alumínio, um pouco d’agua, um pedacinho de sabão
azul em barra, e um canudinho de mamona. Antigamente existiam muitos pés de
mamona no mato.
Então eu pegava o canudinho,
colocava na canequinha, e batia, batia, batia. E soprava bem levemente o
canudinho. Dava até prá perceber o ar dos meus pulmões passando suavemente pela
parte interna do canudinho, que formava
então uma bolha. E esta bolha ia crescendo, crescendo, crescendo, até se
transformar numa linda bola de sabão.
Grande, transparente e levemente multe colorida e alegre.
De repente uma leve brisa ia
de encontro a minha bolinha de sabão, que se misturava com tantas outras
bolinhas de sabão na imensidão do céu azul.
Então eu ficava olhando todas
aquelas bolinhas de sabão, e em especial a bolinha que eu fiz, claro.
E ela corria, corria, corria e
brincava feliz como crianças no campo, tomando banho de chuva na rua, ou
jogando bola.
E subia, subia, subia bem longe... até que de
repente sumia. Então eu chorava, chorava, chorava muito.
As vezes eu penso que a vida é
assim... como bolinhas de sabão. Leves, coloridas, lindas, efêmeras. Que sobe,
sobe, sobe, ganha o espaço infinito, e um dia se vai lentamente, prá nunca
mais.
A REDESCOBERTA DA PAZ
De Nathália
Não é novidade te interpretar
como meu instante de paz. Ele se fez presente de diversas formas: nos teus olhos
castanhos esverdeados, no teu queixo-ninho de colibris, nas tuas maçãs pálidas
porque refletiam o imenso nada da luz do dia, no teu olhar silencioso sobre o
oceano trovejante. Foi novidade, porém, como eu te ouvi na última vez que
nossos braços se receberam e se amaram. Com a cavidade que eles formaram sem
saber, porque nunca se importaram com qualquer coisa que despertencesse do
aproveitar de estarem juntos, eu ouvi. Similar às crianças que buscam a
imensidão oceânica no lar dos moluscos, porém com a diferença de não
procurá-la, encontrei a sinfonia das ondas no teu colo. Deitada, em vigília,
reencontrei as conchas perdidas da infância abandonada. Tão mais fáceis que o
desterro de moluscos adormecidos e opostas à exaustão das brincadeiras
infantis, foi no teu braço que elas, nômades, decidiram migrar-se. E eu demorei
a acreditar. Aproximei teu vácuo aos meus ouvidos em busca de ouvir tua
natureza, assim como quando criança procurava os oceanos longínquos na
superfície desértica das conchas. E, para beijar a paz, isso foi o suficiente.
Não que sempre tenha sido, porque antes eu precisava tocar teu corpo e sentir
teu gosto na tentativa de tocar a abstração. Absurda, não via no simples
existir calado e intocado uma possibilidade de estar serena. Seguia a vida como
uma infância eterna: necessitava texturas, sabores, presenças. Ainda criança,
precisava pegar as conchas e comer o molusco, quase esquecida das ondas e suas
melodias. Até deitar junto a ti, detentora de paraísos insossos e impalpáveis,
casa para os instantes de beleza pura que brotam da natureza. No oco formado
entre nossos corpos da última noite em que partilhamos sonhos, me desfiz do
absurdo e, sem ele, pude experimentar a paz. Confusa, fui compreendendo:
possuía o mesmo relevo e sabor, que eu não sentia, porque eram apenas
lembranças de quando ainda, tolos, precisavam de nomes.
AMOR COM CUIDADO
De Mirian Martinez
Eu tenho uma tia (considero
como mãe) que mora na Paraíba. Tia Maria sempre foi uma mulher muito independe
e mantenedora do seu lar. Viúva, mãe de
três filhos, que lhes presentearam com 5 netos e mas alguns do coração. Mulher politizada, de uma cultura fantástica,
viajada, articulada, de muitos amigos, muito solidaria e com uma vida social
muito extensa, tranquila, realizada e feliz.
Sempre tivemos uma relação (tia e sobrinha)
muito forte com direito a férias e viagens juntas.
Devido a pandemia e o distanciamento social,
há quase dois anos sem nos encontrarmos, nosso dialogo passaram a ser somente
via telefone, mensagens e vídeos. No decorrer dessas chamadas, percebi o quanto
a pandemia havia lhe tirado todas as suas atividades, obrigando ao isolamento
literalmente só, (considerando está inclusa na faixa etária de risco),
inclusive o distanciamento dos filhos e netos, lhe roubando todas as energias e qualidade de vida social. Através dos nossos diálogos, , percebi
também o quanto esse isolamento estava
lhe provocando alguns sentimentos que o desconhecia, e preocupada com as
consequências futuras sugeri que à partir daquele dia nós duas , assumiríamos o compromisso de
tomarmos café da manhã juntas.
No dia seguinte, iniciamos
exatamente as 7:30, com tudo que temos direito, isso é: mesa posta, o dejejum com ovos, pão, queijo e
aquele cafezinho delicioso com nossos celulares ligado ao vídeo e assim
dialogamos, damos risadas, contamos casos e todas as novidades inclusive da
família, uma maravilha, e assim, isso virou nossa rotina do dia a dia.
Em um determinado dia,
levantei um pouco mais tarde, 8:10 e tomei um susto quando percebi que ela não
havia me chamado (7,30 )o que era de costume para o café. Assustada, liguei para ela, uma, duas, três
vezes e paralela a isso, arrumando a minha mesa para o café, fiquei apavorada
quando as ligações finalizavam sem retorno.
Acionei meu marido na qual o mesmo também ficou preocupado por já
conhecia nossa rotina e sabia o quanto era importante para mim.
Tentei falar com seus filhos
sem êxito, com isso meu coração foi ficando mais apertado, apreensivo, os meus
pensamentos já fugiam do meu controle, foi quando lembrei de uma vizinha
chamada Nice na qual ela tanto falava e assim através do endereço tentei localizar
essa vizinha, porém sem êxito mais uma vez
Já sem apetite, à angustia
tomando conta do meu ser, abro o zap e vejo uma frase: “Hoje acordei mais
tarde, fui caminhar na praia com thor, meu cachorro, mas já cheguei” Ufa!
Chamei-a imediatamente ao vídeo, com o coração mais aliviado e já fui
solicitando os contados possíveis para que isso não se repita.
Continuamos nossa rotina com a
certeza que esses momentos vivenciados e reflexivos fazem parte da
transformação do nosso futuro, com a certeza que esse “retiro” nos encoraja a
agir em busca de uma vida virtuosa com olhar ao outro, aqui e agora.
PENITÊNCIA
De Thiago Siqueira
João mal conseguia esconder a
ansiedade: domingo seria a sua primeira celebração. Colegas do seminário talvez se chateassem em
pastorear num vilarejo assim tão longe do mundo. João não. O Terral bem que
poderia ser o seu lugar. Sabia as sinas das cidadezinhas sem eira nem beira. As
ruas de barro batido até tinham seu charme, pelo menos até chegarem os dias de
chuva. Mais difícil, lhe parecia, era assumir autoridade de vigário em lugar
assim, quando a barba malmente cresce no queixo. Com vinte e alguns anos, os
pés ainda tremiam sob a batina. Mas está lá, manhã de domingo, missa celebrada,
ânimo renovado. Se algum fiel havia percebido os tremores da batina, ao menos
não fez questão de denunciar.
Na saída, contudo, no último
banco, uma senhorinha, de cabelos muito brancos envoltos em um véu muito negro,
permanecia ali, sentada. Olhando melhor, se via que vestia-se inteiramente de
preto em um vestido já meio antiquado. Levantou-se um tanto torta e em passos
lentos encaminhava-se na direção do vigário. Padre João, surpreso, observava
intrigado o ramalhete de flores que ela trazia nos braços. – “A senhora precisa
de alguma coisa?”, perguntou-a gentilmente – “De maneira alguma, reverendo.
Trouxe-lhe apenas este ramo de cravos para que se sinta bem-vindo à nossa
paróquia”. O gesto não deixou de emocioná-lo, embora ainda lhe parecesse
pitoresco – “Ora, não precisava disso, não carecia jamais. Mas agradeço muito a
senhora, dona...?” – “Hilda, reverendo. Me chamo Hilda. E as flores vieram do
meu jardim, então não foi trabalho algum. Espero que o senhor se acostume bem
ao Terral. As mudanças sempre assustam, embora necessárias. Monsenhor Nicolau
parecia não entender isto. Que bom que agora nós temos um pároco jovem, vai nos
fazer bem”.
No seminário haviam lhe
prevenido da obsessão santarrona de velhas beatas, mas não sabia se era
exatamente o caso ali. Os modos teatrais daquela senhora pareciam totalmente
deslocados. Como se ela mesma não pertencesse àquele lugar. Ou mesmo àquela
dimensão. Palavras, gestos, ideias, tudo lhe parecia um tanto atravessado.
Estupefato, padre João nem percebeu quando ela, tendo se despedido, ia embora,
já atravessando a soleira da porta. – “Dona Hilda, olha, muito obrigado pelas
flores. Vejo que a senhora está trajando luto, que indelicadeza enorme a minha.
Meus sinceros sentimentos”. Os olhos miúdos e embaçados marejaram – “Obrigado,
meu filho. Essa é outra coisa que nós temos que nos acostumar. Difícil, mas
temos sim.” A ternura que se derramou rompeu a relação padre – fiel e a João,
poderia ser a sua própria avó ali, se viva fosse.
João, a algum custo, conteve o
ímpeto de abraçá-la e procurou o consolo nas palavras – “Se a senhora me
permite, quem a senhora perdeu? Vou endereçar as minhas orações e nosso Senhor
há de cuidar bem.” No que lhe respondeu uma voz já trêmula – “Meu marido,
padre. Meu Agenor.” Com as lágrimas já descendo corredeiras, dona Hilda se pôs
a caminho de casa. Padre João ainda se debatia com a estranheza da mulher,
quando uma outra voz lhe alcançou:
– “Eita, padre, tu já conheceu
a pró Hilda, né? Coitada, essa ficou lelé.” Angélica, a assistente da paróquia,
murmurava risonha – “Monsenhor Nicolau corria quando no fim da missa ela vinha
procurar. O homem tomava chá de sumiço.” Padre João que já não se aguentava de
curiosidade, pediu-a que lhe destrinchasse o mistério. Afinal, que tipo de
acontecimento era dona Hilda? – “Ih, seu padre! A dona Hilda era professora de
português. Ensinou quase todo mundo daqui do Terral a ler e escrever. Mas
quando o marido dela sumiu no mundo, ela despirocou.” O vigário se perturbou –
“Ué, o marido dela não morreu?” A pergunta pairou por instantes no ar.
Angélica não era de se conter,
não seria agora que mudaria – “Olha, se morreu ou não morreu, a essa altura
ninguém mais sabe, padre João. Mas já tem quase trinta anos que ele
desapareceu. Era desses homens que vivia no bar o dia inteirinho. Corre na boca
miúda que não aguentava ver um rabo de saia. Mas o povo tem uma língua que não
dá pra confiar, o senhor sabe. O negócio é que um dia ele sumiu. Na época
disseram que fugiu com uma rapariga que andou por aqui. Depois disso, pró Hilda
passou a se vestir de preto o tempo todo e já não falava coisa com coisa.
Filhos eles não tinham, ela tinha somente a escola mesmo. Mas pouco tempo
depois, aposentaram ela, e aí a coitada passou a viver por conta do jardim. A
gente do Terral pode até dizer que ela é doida, mas o quintal ali é a coisa mais
linda de se ver, o senhor tem que ver, seu padre.” Padre João, enfim, faiscava
intrigado com a figura peculiar de dona Hilda.
A três ruas dali, Hilda
descansava no banco da cozinha com um copo d’água nas mãos. O calor do verão
era cada vez mais implacável e os vestidos pretos não ajudavam. Domingo era dia
de jejum, então se dispensava do fogão. Pôs o avental, recolheu as ferramentas
de jardinagem dependuradas na parede do quintal e pôs-se mais uma vez a cavucar
entre os craveiros e os hibiscos. Falava sozinha, como era de praxe nos últimos
vinte e seis anos.
– “Um minuto é o tempo parado
no limiar da vida. Um minuto, é só isso, mais do que o necessário. Um minuto de
desespero é o suficiente para se perder. Somente os olhos, somente o nariz,
somente a boca, somente quem sente entende o feitiço. Um minuto é tempo para
muitas cicatrizes, muitas. Só entende quem sente. Só está só quem sente.”
Com o dorso da mão limpava o
suor escorrendo na testa, quando os olhos encararam a pedra enorme no meio do
jardim. A pedra que há vinte e seis anos desesperadamente ela havia arrastado
até ali. Com lágrimas nos olhos, pranto desmedido, balbuciava – “Agenor, seu
desgraçado, maldito, olha o que me obrigaste a fazer.” E naquele domingo, nada
mais disse.
ERA PARA SER APENAS
MAIS UM FIM DE SEMANA
De Rosália
da Silva
Hoje é sábado. Os bares estão
cheios de homens vazios, mais um fim de semana. Chega segunda e pede apenas ar.
Este lhe falta. A angústia toma conta de seus pensamentos, não sabe o que
fazer, sua vida passa como em um flashback. O
episódio começou com uma retrospectiva do que havia acontecido até ali. Sábado,
uma vontade louca de ir a um barzinho qualquer, beber um chopp, dançar e sorrir
assim meio alcoolizada, uma falsa-feliz.
Ao som de
uma música qualquer, seu corpo e seus pensamentos rodopiavam no salão. Dezenas
de pessoas se aglomeravam num pequeno espaço. Risos, ecoavam juntos ao som
estridente neste pequeno espaço. Corpos colados. Consegue sentir o arfar de uma das pessoas
que estão a sua volta. Ele respirava em um ritmo fora do normal, frenético, acompanhando
a música que o DJ tocava.
Foram horas
de pura alegria. São 4:30 horas da manhã de domingo, voltamos para casa em um
estado de puro êxtase. Sente como que transportado para fora de si e do mundo
sensível. Talvez todo esse intenso sentimento fosse efeito não só da bebida,
mas do prazer da liberdade. Estamos em cinco em um carro. Todos alegres, e
irresponsavelmente felizes. Afinal depois de tanto tempo enclausurados, por
causa da pandemia, não vai ser apenas um fim de semana que levaremos o vírus, somos
jovens, praticamos atividades físicas. O sol já está nos aquecendo, resolvemos
parar no mirante das Mangabeiras. Alguém do grupo sugere irmos até a Rua do
Amendoim. Lugar que ficou conhecido por uma ilusão de óptica. Marcos nosso
piloto deixa o motor desligado e desengrenado e solta os freios, temos a ilusão
de que o automóvel sobe a rua ao invés de descê-la. Ao observarmos que objetos
não metálicos, como a cerveja derramada tem o mesmo comportamento, rimos
desmedidamente. Parecíamos crianças descobrindo o novo.
Enfim vemos o nascer do sol no mirante e nossos corpos já exaustos pedia uma boa cama. Fomos para casa. Meu corpo e minha mente estavam elétricos. Dormi, acordei com ressaca mas feliz. Passados alguns dias senti minha cabeça pesada e uma falta de ar me dominava. Buscava-o desesperadamente. Fui levada ao hospital pelos meus pais. Exames foram feitos e a constatação, estava com covid-19. Hoje tudo que quero é apenas respirar, não consigo, preciso de ajuda, meu corpo está fraco. Penso, “mas era para ser apenas mais um fim de semana”.
OLHOS VERDES
De Luiza Pereira
Certo dia, resolvi me mudar
para a praia. Comprei uma casinha bem simples com vista para o mar que era o
que eu mais amava. Fazia dois anos que a minha esposa havia falecido e comecei
a tomar conta de Henrique, nosso filho cuidando-o com muito amor. Ele era um
menino lindo, com muita energia e deu os primeiros passos com um aninho de
idade, ao meu lado. Com ele, já não me sentia tão sozinho e consegui aprender a
amar de novo. Sabia que ia sempre sentir falta de minha esposa. Mas tive que
ser forte e seguir em frente.
Escolhi a praia, pois era um
lugar especial para mim. Sempre quis ter uma vida tranquila. E em relação ao
que estava acostumado, não sentia mais a mesma coisa. Não queria mais morar na
metrópole, com todo aquele barulho do trânsito e dos burburinhos de conversas
entre as pessoas, vindo de uma rotina agitada. Como me formei em Biologia,
recebi uma proposta para trabalhar numa empresa próxima dali que trabalhava com
as principais espécies de animais marinhos. Seria uma bela oportunidade.
Precisei me adaptar com a nova
rotina, procurando conciliar o tempo para cuidar de Henrique. Após um tempo,
ele cresceu e quando completou cinco anos, ele me pediu para ensiná-lo a andar
de bicicleta. E era o que eu mais gostava quando era criança. Durante o dia,
ele ficava com a babá e quando eu saía do trabalho, costumávamos caminhar
juntos para ver o mar, até que comecei a ensiná-lo a andar de bicicleta.
Primeiro, tirei a rodinha de um lado e depois a do outro e assim ele começou a
se acostumar. Teve um dia que ele conseguiu se equilibrar sozinho sem que eu
precisasse empurrá-lo e depois disso, começou a andar de bicicleta. E eu fiquei
muito feliz por ele. Certa vez, perguntou:
- Pai, posso dar uma voltinha?
- Pode, meu filho. Só fique
pela volta, para que eu possa cuidar onde você está. – respondi.
Eu não queria deixa-lo ir,
pois tinha medo do que estava acontecendo pela volta. Entretanto, queria vê-lo
feliz. E ele foi. Pegou a bicicleta que estava no canto da garagem e saiu pela
porta. Fiquei cuidando pela janela para ver onde ele andava. Até que numa
fração de segundo, o perdi de vista quando fui à cozinha desligar o arroz que
estava na panela. Fiquei desnorteado, sem saber o que fazer. Se algo acontecesse
com certeza seria minha culpa. Prometi que sempre cuidaria do meu filho e ele
seria a minha prioridade.
Sobre a areia seca da praia,
havia a marca das rodas da bicicleta, o que quer dizer que ele passou por ali.
Entretanto, comecei a correr desesperado, até que vi de longe a uns cem passos,
um boné escuro. Estranhei, logo de cara. Por que aquilo estaria ali naquele
horário, próximo de onde meu filho havia pedalado? Fora que a praia estava mais
calma, não tinha quase ninguém lá. Pois minha intuição estava certa. Na minha
direção, vinha uma mulher que quando se aproximou, identifiquei ser uma amiga
de longa data. Perguntei para ela se ela tinha visto um menino de cinco anos
com uma bicicleta. Ela respondeu:
- Acho que sim. Porém, ele
passou rápido por aqui.
- Você viu para onde ele foi?
– perguntei, aflito.
- Não vi, aconteceu alguma
coisa?! – retrucou.
Parecia que ali tinha alguma
coisa. Só não sabia o que era. Ela me convidou para ir até sua casa com o intuito
de conhecer melhor onde ela morava. Abriu a porta e depois me ofereceu um copo
d’água. Era a melhor coisa para acalmar os nervos. Entretanto, eu estava
inquieto com a situação e me sentei do lado de fora, numa escadinha de três
degraus. Sentia o suor escorrer pelo rosto e as mãos formigarem, trêmulas e não
conseguia sentir nada. Me debrucei sobre os braços enquanto Ana Paula passava a
mão nos meus cabelos na tentativa de me acalmar.
– Calma, ele vai aparecer!
Respire, por favor. – falou, me fitando nos olhos.
– Eu não sei. Meu filho é tudo
pra mim e eu não quero que nada aconteça com ele. – chorei, entre soluços.
Ela pediu para que eu entrasse
um pouco e foi o que fiz. Me convidou para ficar um tempo com ela. Sem querer,
vi pela janela um homem com uma criança no colo e ela parecia estar dormindo.
Me prontifiquei para ver mais de perto e tentei ser o mais discreto possível,
sem fazer barulho. Ele estava com uma mochila nas costas. O jeito dele me
parecia familiar, inclusive seus trejeitos e seus passos. Até que consegui
identificar quem era quando ele virou o rosto na direção em que eu estava: era
o meu chefe. Me dei de conta que ele tinha cortado o cabelo e estava sem o
boné. Então aquele objeto não estava ali, na praia por acaso. Não pude acreditar,
queria que isso fosse mentira.
Ana pegou o jornal que estava
sobre a mesa, na sala. O carteiro tinha deixado hoje pela manhã. Ela me mostrou
e peguei-o para ler, pois sempre estava ligado às notícias da região. O jornal
Conexão era um dos mais conhecidos da cidade por sua qualidade e por apurar os
acontecimentos com muita precisão. Abri e comecei a ler página por página, até
que parei quando vi uma matéria que me chamou a atenção: assédio contra
menores.
Li a matéria toda e fiquei
impressionado. Só que havia um problema: as características do homem coincidiam
com as de meu chefe. Infelizmente, as crianças são seres inocentes que sofrem
com este tipo de violência e muitos jornais não reportam-na como este fez. –
pensei, enquanto uma lágrima escorria sobre o jornal, molhando a foto que havia
sido feita para a matéria. ‘No dia três de março, tivemos mais uma vítima de
assédio na região de Florianópolis. O crime aconteceu no bar do Boni,
localizado na Avenida Acácio Garibaldi, próximo à Lagoa da Conceição’. Parei
por um tempo e pensei. Era ele, não tinha como ser outro.
Ela foi até a janela e só viu
o menino pendurado numa corda presa à arvore, enquanto o homem não estava mais
lá. Pelos olhos claros, ela conseguiu identificar que era Henrique, pois já
havia falado dele para ela. Estava com marcas pelo corpo. E o pilantra foi
embora. Ana ficou traumatizada e foi até mim. Boquiaberta, ela só me abraçou e
eu fiquei sem entendê-la, até que ela me falou:
- Vi um menino preso numa
corda. – falou, com a voz fraca.
Fui até a janela para me
certificar de que não era ele. Não queria acreditar. Porém, após ver aquela
cena, vi que sim. Inclinei a cabeça sobre os joelhos, chorando. Saí pela porta,
com raiva. E fui até lá. Sabia que não podia tocá-lo, pois poderiam encontrar
minhas digitais e eu não queria levar a culpa. Entretanto, em seguida, um
barulho de carro vinha na direção em que eu estava, lá fora. Era a polícia para
reportar mais um caso. Abri os olhos, erguendo corpo. Me sentia fraco ao mesmo
tempo que minha visão ficou turva e tudo começou a escurecer ao meu redor. Com
o corpo sobre a terra, caí no chão desconcertado. Mais uma vez, uma vida ia
embora como nasce uma semente. E isso doía muito. Não ver mais aqueles olhos
verdes.
UM NOVO OLHAR
De Íris Chaves
Uma varanda no terceiro andar,
se transforma em observatório do meu isolamento voluntario, mas necessário. A
partir dela, os fatos são registrados numa visão estratégica de tudo que
acontece, entre o céu e o chão. Nela uma figura se destaca, pelo som do latido,
balançar da cauda ou quando o vendedor de picolé grita lá embaixo “olha a
cremosidade!!!” Nossa impressão é que a cauda vai sair do corpo, de tanto ser
agitada. E quando alguém na rua o chama pelo nome? Aí se instala aquela vontade
de pular do terceiro andar, para festejar a amizade construída nas caminhadas
pela praia. Essa criatura me foi presenteada em meio a pandemia do coronavírus,
quando meu isolamento mostrava sinais de limite. Daí pra frente, meus dias
foram ocupados e minha atenção saiu das notícias midiáticas, para a busca de
como cuidar e me relacionar com esse pequeno ser. Hoje eu e ele, vivemos em
plena harmonia das nossas necessidades. Contemplamos a natureza e a
movimentação da rua, a partir da varanda que desenha e redesenha diuturnamente
sua paisagem. Ora o mar está verde-esmeralda, ora ele está verde-musgo. Porém,
sempre deixa a mostra um horizonte de azul intenso. E o vento? Esse, entra de
casa-a-dentro refrescando-nos e trazendo odores do mar. De repente, somos
agraciados com uma calmaria que nos leva a ouvir o “quebrar das ondas”. É nesse
cenário que vivemos nós: eu, à espera de uma vacina, que as autoridades
(ir)responsáveis retardam em oferecer à população, e THOR, um shitszu, que
transformou minha vida ajudando-me a ser uma pessoa melhor. Impalpável? É o
prazer dessa convivência!...PRESENTE-FUTURO!
AMOR SEM BARREIRAS
De Ubirajara Lemos
Já não eram tão jovens, ele
negro, ferreiro, trabalhador de usina, descendente direto de negros
escravizados e de uma comunidade unida pelos laços fraternos; ela filha adotiva
de uma família tradicional decadente, temente a Deus e aos pais adotivos, meio
acaboclada, a simpatia em pessoa, domestica prendada de prendas de doces finos
á renda de birros. Conheceram-se em casa quando o negro Camilo lá foi fazer um
serviço, logo a cabocla Ramira se encantou e, que belo par formou.
Casamento marcado, correram os
proclamas e fez-se o festejo á altura da decadência da família porem, com muita
fartura e, da residência dos pais lá se foi Ramira e Camilo para o novo lar,
transportados num carro de bois enfeitado.
Não tiveram filhos, mas todos
os sobrinhos, os sobrinhos netos eram, sem dúvidas, filhos amados de um casal
bem humorado que só tinha olhos para o amor; amor que transbordava e passava de
todos os filhos adotados para os vários afilhados, os filhos dos vizinhos,
porque era um amor tão grande que não podiam se amar sozinhos.
O tempo passou, os filhos
adotivos, os afilhados, os agregados cresceram e os dois, com zelo, cuidavam
dos netos, dos bisnetos e se completavam como se filhos seus fossem e, não
perdiam uma festa de batizado a casamento, lã estavam unidos como em lua de
mel.
A velhice vem e de surpresa
deixa Camilo cego, consequência de catarata e de outros traumas adquiridos na
ferraria e ele não se desesperava pois, enxergava por ela, que passa a cuidar
de tudo da economia, recebendo a aposentadoria, controlando o dinheiro, e nem o deixando restrito do seu único vício:
o jogo do bicho e, de repente ela adoece, é o coração que apesar de tanto amor
não resistiu não.
Foi rápido o acontecimento:
foi ao hospital duas vezes e resolveu que era chegado a seu dia, a sua hora e,
segundo Camilo, nem pra morrer trabalho ela deu; tomou o seu banho, deitou-se
vestida com sua melhor camisola de rendas, se deram ao mãos e com paciência , á morte , ele sem a
deixar um só minuto, esperou até o fato acontecer e, Camilo em ato de amor só
fez dizer:
-“ Parte contigo Deus a luz
dos olhos meus”
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