CONTOS NOVAS LETRAS
Colocamos a seguir os contos dos participantes da oficina NOVAS LETRAS.
Os textos foram criados a partir de um tema proposto:
Caminhando em direção a um mundo que está vindo; Distopias pessoais e cotidianas
A criação foi livre em cima dos processos e experimentos que foram trabalhados e discutidos durante a oficina.
·
A VIDA EM TELA GRANDE: PRÉ, EM E PÓS
PANDEMIA
Edenbergue
Lima
·
ME INDIQUE UMA RECEITA
Aline
Gonçalves
·
O HOMEM AMARELO
Eunice
Silva
·
O ÚLTIMO TRAGO
Vera
Motta
·
O MONSTRO QUE HABITA EM MIM.
Rhaion
Stone
·
ESTRELA ALÉM DO TEMPO
Lara
de Paula
·
COLCHA DE RETALHOS
Tatiana
Aranha dos Santos
· O VESTIDO VERMELHO DOS
MEUS SONHOS
Alexandre Santos (Melk
Mercury)
·
OS SAPATOS DE COURO ITALIANO
João
Elias
·
O CAOS EM PANDEMIA
Egerce Rosa
·
DONA LUZ
Taiana
Lemos
·
DESAMOR DE PANDEMIA
Sthefane Souza
·
MATRIX
Adrian
Santana
·
PÓS-PANDEMIA
Bira
Lemos
·
SENTIDO OBRIGATÓRIO
Oluwa Seyi
A VIDA EM TELA GRANDE: PRÉ, EM E PÓS PANDEMIA
Edenbergue Lima
Maria Mandala e João Sorriso.
Mandala era sobrenome mesmo, já Sorriso era o apelido
de João rapaz de Sorriso largo.
Tanto Maria quanto João eram cinéfilos de tv, amavam
assistir desde criança aos filmes de ficção científica, aventuras.
Quando cresceram foram fazer faculdade de Cinema se
tornaram colegas de curso, produziram alguns curtas metragens mas nunca
imaginaram que situações que a sétima arte apresenta fosse vivida na realidade.
Acostumados com filmes que trazem um prenúncio de fim
de mundo ou de pestes incontroláveis se viram de repente trancados em casa por
causa da pandemia mundial da covid-19.
De início demoraram a acreditar.
-Será que isso é alguma ação de marketing para uma
nova produção cinematográfica?
Não infelizmente não era.
E agora
O que a arte pode trazer de significativo para vida?
Experimentaram.
Documentaram a vida louca em meio ao trancafiamento de
alguns.
O que esperam agora é fazer longas metragens contando
belas Histórias.
ME INDIQUE UMA RECEITA
Aline Gonçalves
Várias tentativas de
compra durante o pré-lançamento. Duas semanas na lista de espera. Madrugadas a
fio para acompanhar a mudança de preços. Não poderia deixar escapar uma boa
promoção. Afinal, quem perderia?
Hoje é o dia. O
finalmente chegou. Ela é exatamente como vi no vídeo, sem os contras,
obviamente. Tela sensível ao toque, sensores de presença e proximidade, leitor
de temperatura, 100 terabytes de
memória interna com acesso a nuvem, sincronização automática dos dados pessoais
com envio de notificações diretamente no meu celular. Basicamente, a governanta
que não pedi, mas agora não vivo sem, uma babá para adultos lifestyle.
Ela oferece controle
completo do que entra por um buraco e de bônus também acompanha criteriosamente
tudo que sai pelo outro. Essa surpresa só descobri quando abri a caixa. Era um
dispositivo para ser instalado nos banheiros. Super discreto, eu mesma depois
de quase um mês nem me lembro mais de sua existência ali.
- Dieta em dia a
três semanas, você acredita nisso?
- Acredite em seu
potencial. Bons hábitos e uma boa alimentação são a chave do sucesso!
- Eu sei. Por isso
mesmo, quero me presentear com um chocolate para minha tia Tê, afinal ela me
visita apenas um dia no mês e quanto melhor for nossa convivência melhor para
mim.
- Não indico o
consumo de chocolates ou outros tipos de doces. Você apresenta temperatura
maior que o padrão habitual, com sinais de retenção de líquidos, sistema
imunológico instável que podem levar a um desconforto geral causando maior
estresse. O açucar, cafeína e outros estimulantes podem agravar os sintomas.
- Como assim? Só
quero um chocolate para aliviar a tensão.
- Entendo sua
persistência em querer quebrar seu próprio objetivo. Acredite, quero ajudá-la a
se amar cada vez mais. Ajudarei você a manter sua palavra e não se trair.
Bloqueei o cartão de crédito para compras de alimentos e saques de dinheiro.
Nenhum de seus aplicativos mostrarão imagens ou propagandas relacionadas a
comida ou que façam você duvidar de si mesma. Eventos sociais foram cancelados
para evitar contato com más influências. Todos os envolvidos foram avisados por
email e apagados de sua agenda online
e histórico de envios. A porta estará travada para retirada de alimentos até o
horário do almoço.
- Que evento? Eu
marquei algum compromisso para hoje?
- Não senhora. O
único compromisso salvo na agenda para o dia de hoje é o horário de trabalho em
home office e os horários de alerta
para consumo de líquidos, refeições e as pausas para o alongamento.
- Tudo bem! Foco no
trabalho, hoje é apenas mais um dia para vencer.
Relatórios terminados,
revisados e enviados como planejado. Missão cumprida. Sucesso garantido. Foi
assim que pensei que seria meu dia, mas não foi. Viajei e pulei de aba em aba
até agora. Meu dia se foi.
- Você acha que
amanhã eu posso ser melhor?
- Receita não
encontrada. Reconecte a internet para
atualizar o sistema e receber novas receitas.
- Não é essa a
resposta que quero ouvir. Será que está com defeito?
- Análise de
defeitos realizada com sucesso. Sem defeitos ou avarias. Em caso de dúvidas contate
o serviço de atendimento ao consumidor para esclarecimentos.
- Vamos ao que
importa. Estou com fome! O que tem para hoje?
- Seu intestino não
está funcionando adequadamente. Indicamos um jejum para renovação celular. A
porta da geladeira permanecerá trancada até o fim do jejum.
- Merda!
Eunice
Silva
Segunda.
Lembro-me vividamente daquele mês de março: quente,
tímido e incerto. Meu corpo esguio, enlatado, ia-se ricocheteando inerte, entre
tantos outros corpos inertes, de encontro as barras de uma velha serpente de
aço sobre trilhos. Rápido rápido rápido pensava comigo e não vislumbrava nada
além das urgências, dos ponteiros dos relógios, da comida fria e da bebida
choca que me ofereciam. Voltei para a jaula. Sob o conforto das horas comi do
que me deram e bebi do que me abastasse. Tudo tinha gosto de pressa. Rápido
rápido rápido pensava comigo e não via nada além das urgências, dos ponteiros
do relógio, do vazio da existência. Entende?
Amanheci meio morta. Amarela como o homem amarelo de
Anita Malfatti. Ninguém sabia o que eu tinha. A rotina me encarava ressabiada,
gritava em meus ouvidos “rápido rápido rápido” e eu não via nada além de
escuridão e não sentia nada além do frio e não comia nada além do que me davam:
pílulas pílulas pílulas. Desaprendi a andar, falar, comer... Estava sempre em
combustão: o corpo em lava, a boca seca, os olhos sem alma. Tinha toda sede do
mundo e nada me saciava. Bebi da calma.
Dali em diante, tinha toda pressa do mundo condensada
dentro. Forcei retorno, fingi melhora. A vontade de encarar a rotina,
gritar-lhe mil amarguras na face e bradar que eu voltara. Sim, eu voltara! Toda
ela era maior que o meu estado. Estava pronta pronta pronta e aguentava mais
das jaulas, da comida fria, da bebida choca que me serviam todos os dias. Mas o
corpo não funciona sem a mente e tampouco a mente consegue suportar as novas
limitações de um corpo meio morto. Acordei ocre. A vista fez curva nas figuras
da paisagem, minha cabeça fez vórtice, o peito arfava e o suor se amalgamava em
minha matéria convertendo-se em gelo. Tombei torta torta torta, depois, não me
lembro quando, quiseram saber o que eu tinha.
Não sabia. E como ninguém sabia, segui sem resposta.
Me deram de comer: pílulas pílulas pílulas e a vida se arrastava miserável e
imprecisa, até que me encontrou. Pela primeira vez, olhei-a de frente, exausta,
carente de afago. Chorei liberdades em seu abraço. Agradeci. A rotina ensimesmada, dizia-me:
rápido rápido rápido, zombava do meu corpo lento lento lento. Mas havia tempo,
agora sabia. E porque havia tempo, eu materializava tudo o que presentearia ao
futuro. Ganhei outra cor. Passei a recusar as jaulas, a bater nas grades, a
empurrar a comida de volta e a provar do agora agora agora, quando tudo que me
davam era pressa pressa pressa.
Segunda.
Lembro-me vividamente do mês de março: feroz, altivo e
colérico. Meu corpo ia ereto, enlatado, as mãos firmes presas as barras de uma
velha condução sobre o concreto quente. Não havia transeuntes e o trânsito
caminhava sob faixas brancas e amarelas do morno asfalto. O mundo era outro.
Recriava os comandos em minha mente: “não toque”, “não se aproxime”, “evite contato”,
“evite” “evite”. Não não não, sim sim. O que é sim? Não consigo dizer.
Finalmente vi o mundo, mas ele era outro. Assim como
eu havia mudado. Pela avenida se viam rotinas quebradas, máscaras sob máscaras,
corpos doentes. Finalmente vi o mundo: ele estava exausto. Amarelo como o homem
amarelo de Anita Malfatti.
O ÚLTIMO TRAGO
Vera Motta
Débora morava sozinha. A música era a companhia que
preenchia todos os vãos do seu modesto apartamento. Deitada no sofá – numa
viagem que era só dela – absorvia, minunciosamente, a letra da canção como quem
dissolve o algodão doce na língua.
A sala – apenas iluminada com o esverdeado do abajur –
completava a ambiência do templo em que habitava.
Ela se levantou do seu barco acolchoado às dez horas
da noite. Pegou sobre a mesa o maço e o isqueiro. Levou o cigarro aos lábios.
Sentiu o aroma do tabaco ainda apagado.
- Tisc – Acionou o isqueiro. Antes que a faísca
inflamasse o gás – ouviu o grito entrar pela janela.
- Não! Não mata não! Não! não mata não!
O coração de Débora disparou. Paralisada ela aguardava
o disparo.
- Pô véi não mate não … me dê a última aí!
O apelo partiu de um homem que andava apressado para
alcançar o outro que expelia espessas baforadas.
Acompanhando a cena – na segurança da sua janela no
terceiro andar – o coração de Débora não sossegou. Continuou acelerado apesar
do estampido não ter ecoado. Pelo contrário! Ela percebia a morte entrando pela
boca do homem que interrompeu a sua paz.
O rapaz – das espessas baforadas - passou a guimba
acesa para o amigo.
O vírus invisível e letal podia ser visto por Débora
entrando na boca daquele que pediu para não matar o resto da ponta do cigarro
ainda aceso – mas escolheu morrer.
A pandemia assolava a cidade. Os dois desconhecidos –
sem máscaras – desafiavam a morte numa roleta russa.
Naquela noite, Débora parou de fumar.
Rhaion
Stone
"Quero que verifique isso oito vezes.", uma
voz ordenou e eu apenas obedeci. No começo, a sua presença não era um incômodo
então não foi um problema realizar as suas exigências, porém ela foi se
tornando o meu pesadelo. Os números aumentavam com frequência, as coisas que eu
precisava verificar também. O que era apenas um ato inocente se tornou algo
incontrolável e doloroso. A voz ficou insuportável, me submetendo aos seus
desejos dia e noite, antes, durante e após às minhas atividades.
Resolvi contrariá-la, a pior decisão que eu já tomei.
A voz me disse coisas horríveis, fez ameaças, encheu a minha alma com
sentimentos ruins, me tornou a sua refém. Dia após dia, ela estava ali,
causando desespero e aterrorizando a minha mente sempre que a desobedecia, eu
cheguei atrasada em muitos lugares, só para não causar intriga entre nós.
Parei de trabalhar e pensei que a voz, finalmente, me
deixaria em paz. Eu estava enganada, pois ela continuou controlando os meus
movimentos e impondo as suas regras.
No início, pensei que era apenas um fruto do estresse
que o trabalho causava, mas no final eu reconheci que ela é parte de mim. Fui
aprisionada em um dia comum, como qualquer outro, sem aviso prévio ou data de
término, onde eu sou a prisioneira da minha própria mente.
Lara
de Paula
Sem medo de nada, Oluwa apontava pra onde tinha que ir
e ia. Era assim mesmo, uma necessidade de sua alma, caminhar. Já nasceu
desgarrada, delicada mas resistente, independente. Alheia ao mundo que lhe
pintavam outro: sombrio, medonho, lotado de gente impotente, um buraco negro
sem possibilidade de se viver contente. Muito antes que pelo contrário: Oluwa
era ser de movimento perene, não intermitente, e com suas cores iluminava todo
e qualquer ambiente. Constelava olhares com sua força gravitacional e chegava
ao espaço sideral sua potência de remexer cada elemento. E mesmo com os
constantes gritos anunciando um novo Big Bang, não aprazia a ela o desespero
que a muitos convém, tampouco o conformismo cínico de certos seres pouco
espectrais. Nada impedia sua (transl)ação. Antes que tudo acabasse sempre daria
tempo pra mais uma dança, mais uma façanha, mais um risco da faca da ação no
chão do tempo. Não tinha arrependimentos. Olhava para trás de cabeça erguida
como havia aprendido em outros espelhos-vidas, sempre com olhos de aprendizado,
anos-luz adiantados. Não lhe faltava
ousadia e coragem, se adaptava até à mais árida paisagem, só não se contentava
em fincar-se em solo infértil algum. Orbitava sob sua própria lógica e não
entrava em qualquer buraco de minhoca, nem dava atenção pra nenhuma ideia
torta, pois tinha o foco acima das nuvens. Carregava consigo tantas a seu lado
que era difícil entendê-la sozinha, e não como uma multidão, cardume, cacho,
manada, galáxia. Guerreira na pele e guerreira na alma, Oluwa lutava todos os
dias contra a feiúra com a qual o futuro insistia em se apresentar. Não gostava
do que espiava pela fresta do presente, e de tão descontente pôs-se a pensar:
como mudar? Achou melhor seguir seu coração de antemão e fazer o que sabia de
melhor: agir. E se desenrolando espiralada como os anéis de saturno, foi
alcançando com a barra de sua saia todos os cantos do mundo que precisavam de
limpeza, levantando a poeira - nada cósmica - que assolava o planeta. Inerte a
sua presença não ficava nada, seja pedra, bicho, planta ou coisa, era como se
fosse uma força da natureza em manifestação plena, uma supernova de oferendas
de cura para um universo adoecido. E, ao recusar-se a viver na distopia, Oluwa
inconscientemente também fazia com que outras pessoas se motivassem a quebrar
com rebeldia as correntes que as prendiam. Mas Oluwa sonhava mais alto que a
atmosfera desse planeta, seu olho brilhava com a possibilidade matreira de um
dia não precisar mais só apontar: "ó a lua lá!", e mais perto de
outros corpos celestes feito ela também ficar. Por fim, de tanto tocar com seu
movimento solar, Oluwa virou estrela que dança: cometa, pra poder cada vez mais
distante com sua luz ultravioleta constante poder alcançar. E com seu bailado
intergaláctico, outros mundos, outras eras, outros espaços foram sendo
afetados, foi se criando outro mapa de matéria circumstelar: era a purpurina de
sua coragem que feito asteroide de passagem fazia qualquer realidade mudar. E assim,
constelou-se junto a tantas outras, na calçada da fama das que se permitem
sonhar.
Tatiana
Aranha dos Santos
Acordava cedo todos os dias para ajudar a mãe na
labuta. É assim mesmo, nordestino no sul tem que trabalhar duro. Essa era a
ladainha diária de sua mãe Maria assim que a acordava às 4h da manhã. O pai já
tinha saído muito mais cedo. Estudou até terminar o segundo grau, atual ensino
médio. “Preferiram” que melhorasse na costura, porque seu sonho mesmo era ser
doutora. Doutora Euzênia!!! Eita que ia ficar retado de bom!!!!
Mas, como filha obediente que era, obedeceu aos pais.
Esse destino não foi o de seus irmãos que puderam estudar e “se libertar”. E
assim se passaram os anos. O pai morreu e selou definitivamente sua vida. Selou
não, deu mais um ponto na costura da sua vida. O irmão estudou, casou,
“enricou” e só passava lá uma vez por mês para dar um dinheirinho e saber como
estavam. Nunca iam na casa chique dele.
A irmã estudou, casou, se separou e voltou a morar com
ela e a mãe. Mas logo avisou que aquela vida não era para ela. “Só vou ajudar
no básico, até conseguir ajeitar a vida”! O que nunca aconteceu! Continuou
vivendo com elas sem realmente compartilhar, apenas ocupava um espaço na casa.
Ficava em seu quarto o dia todo, não conversava com ninguém, como se não fossem
dignas ou não fossem capazes de compreendê-la. Dessa vida não poderia tirar um
retalho, talvez um de cor escura, pequeno. Não, esse não serviria.
E mais pontos ziguezagueados iam delimitando a costura
do seu futuro. E Euzênia acabou aceitando. Vivia a vida dos outros enquanto
costurava suas roupas. O que mais amava eram os vestidos de baile e os de
noiva. Se dedicava aos bordados como se fossem para seu próprio casamento. Cada
ponto dado, cada cristal costurado era acompanhado de um suspiro. De tristeza?
Não!!! De prazer, de felicidade por fazer parte desse momento.
As noivas casavam, tinham filhos e ela fazia os
enxovais. E a cada novo nascimento, sentia como se fossem seus filhos. As
clientes nem encomendavam as coisas, mas ela costurava, bordava e, ao
finalizar, percebia que não poderia ficar com o que tinha feito e oferecia.
Sua vida era composta dos retalhos das vidas de suas
clientes. Muitas iam em sua casa para, além de fazer encomendas, desabafar. E
ela bebia cada palavra, cada história. À noite, depois de um dia encurvada na
máquina de costura, revivia as histórias como sendo suas. Era expert na vida,
alheia. Porque, verdadeiramente, nada daquilo era seu.
Namoros, casamentos, nascimentos, brigas, separações,
divórcios, recomeços e morte. Tudo fazia parte de sua colcha de retalhos de
vivências sem realmente ser seu. Os tecidos e linhas que escolhera lá no início
de sua vida estavam encobertos pelos tecidos alheios. E era feliz assim, pelo
menos achava que era pois não conhecia outra forma de viver. E ela sentia todas
as emoções, sofria, sorria, amava e de forma intensa, vívida quase real.
Os anos iam rápidos no ritmo frenético da máquina de
costura. As costas doíam, os dedos enrijeceram e já não podia mais fazer todas
as coisas que fazia antes. Seus bordados não ficavam mais perfeitos e seus
pontos não eram mais lineares, quase invisíveis. Não conseguia mais fazer
tantas roupas como antes, estava sobrecarregada cuidando da mãe que estava
muito doente e da irmã depressiva. Agora tinha que cuidar da casa, da comida e
de duas mulheres acamadas. Estes retalhos ela não poderia colocar em sua
colcha, apesar de comporem sua vida.
A mãe morreu e logo depois a irmã. O irmão não
apareceu mais depois do enterro. E as clientes? Essas não faziam nada além de
trocar um simples zíper ou fazer a bainha de uma calça e essas atividades não
traziam alegria e nem satisfação. Vivendo os retalhos de vidas alheias, não
percebeu que envelheceu e nem sua incapacidade de transformar a felicidade em
roupas especiais.
Pela primeira vez parou e resolveu olhar para si, para
sua própria vida. Foi no armário pegar a colcha de retalhos que vinha fazendo
para si mesma. Percebeu que tinha um espaço enorme vazio, o centro da colcha, a
sua parte da história. E, por não aceitar o que fizera de sua vida, por
perceber que não teria tempo e nem condições físicas de preencher esse espaço,
chorou e deu seu último suspiro.
O VESTIDO VERMELHO DOS
MEUS SONHOS
Alexandre Santos (Melk
Mercury)
Todos os dias quando Merlin acordava, ele gostava de ir à casa
da vizinha vê-la costurar. Dona Lourdes, sua vizinha, adorava costurar vestidos
de todas as cores mais o sonhador Merlin era apaixonado pelo vestido vermelho,
ele dizia que era o vestido dos seus sonhos.
Numa conversa com a costureira o menino emocionado começou a
falar que seu sonho era trazer para os palcos a tão misteriosa mulher que
ele havia gerado para ser a protagonista daquele vestido dos sonhos. Na
verdade, Merlin queria da vida a sua imaginária drag quenn a qual sonhava todos
os dias em apresentá-la aos seus amigos e suas amigas. A personagem idealizada
pelo menino artista chamava-se Púrpura Red, ela adorava fazer shows com
figurinos de muita visibilidade principalmente aquele vestido vermelho digno de
um espetáculo grandioso para sua estrela imaginária.
Merlin soube através da vizinha costureira que Manuela a filha
da patroa de sua mãe havia lhe solicitado uma costura de grande
porte, pois iria formar-se e queria um luxuoso vestido vermelho para sua
formatura. Dona Lourdes disse a Merlin que o vestido estava quase pronto e que
os detalhes seriam ajustados no dia seguinte quando a filha da patroa de sua
mãe fizesse o experimento.
No dia da prova do vestido vermelho a garota Manuela
chegou à casa da costureira passando mal por conta da cólica que sentia naquele
momento e automaticamente o garoto sonhador viu ali a grande oportunidade de
realizar seu sonho ainda que por alguns minutinhos apenas se doando para
fazer a prova já que ele e Manuela tinham a mesma altura e o mesmo peso.
_ Você não imagina a alegria, o prazer que foi para Merlin
experimentar o vestido naquele momento. Ele ovulou literalmente! (risos).
Mais como sabemos que alegria de pobre dura pouco, o rapaz
foi interrompido pela dona do vestido que revoltada berrou dizendo - Ei,
sua poc invejosa, você não encoste no meu vestido, melhor; saia imediatamente
daqui porque não és bem vinda.
Merlin com fogo nos olhos gritou no mesmo tom porque jamais iria
deixar de realizar uma parte do seu sonho e retrucou, olha aqui sua patricinha
uó. Olha aqui querida, eu auxílio Dona Lourdes quando ela precisa e já que hoje
é o dia de experimentação do vestido e você está indisposta, será eu sim, a
poc, como você bem disse quem vai experimentar o meu vestido, ou não, quis
dizer, o seu vestido, quer você queira ou não. Entendeu!
A fim de resolver o problema e muito nervosa à costureira, Dona
Lourdes logo gritou: Chega de furdunço no meu ateliê, olha senhorita
Manuela, como tu não podes experimentar deixa Merlin experimentar e finalizamos
logo isso até porque eu tenho mais dez experimentos hoje, ok.
Sem ter o que falar, a patricinha entortou a boca e calou-se.
Enquanto a poc radiante sentiu pela primeira vez a Púrpura Red nascendo naquele
momento.
Era exatamente às 18h de uma quarta-feira a espera da lua
cheia... Ahhh, e do vestido vermelho dos seus sonhos.
João
Elias
Ele está sentado sozinho em seu escritório. Em cima da
mesa, um papel que já foi retirado várias vezes da gaveta e novamente guardado.
Mas a situação agora é diferente. Os últimos acontecimentos deixaram-no
reflexivo. “O que realmente importa?”. A gravata de seda aperta seu pescoço,
apesar de mal tocá-lo. Os sapatos sociais prendem seus pés, embora sejam de
couro italiano. Ele assina o documento. Então, abre a porta e fala com a sua
secretária: - Por favor, entregue ao doutor Fernandez o papel que eu deixei em
cima da mesa. Não diz mais nada e segue em direção ao elevador. Ao sair do
prédio, abre os braços. Em seguida, tira os sapatos e a gravata e joga-os no
lixo. Caminha sem compromisso, às três horas da tarde. De repente, o celular
toca.
Egerce Rosa
Salvador. Qualquer dia da semana num tempo agitado,
com poucas novidades. Em um bairro localizado um pouco distante do centro da
capital soteropolitana. Já se passaram mais de nove meses e permanecemos na
pandemia do Corona vírus.
Quem diria que a notícia divulgada, em março de 2020,
impactaria com todas as letras e sílabas - o cotidiano de todo o mundo.
A angústia cresce diariamente. Há um turbilhão de
pensamentos que não cessa. Liga-se a televisão e as notícias vinculadas não são
tão boas. A esperança ressurge, o sol quer dar o seu espetáculo, no entanto a
falta de sensatez cobre o seu pôr do sol.
A grande notícia deixa a noite estrelada: a vacina
chegou, está mais perto, mas perto de quem? Terá para todos? Anoiteceu sim, o
relógio marca mais de vinte horas. Ficou noite dentro também, as incertezas são
muitas. O melancolismo e a ansiedade tomaram conta do ser que habita em mim.
A cidade parece está mais calma, porém continuamos em
uma prisão que se instaurara antes da pandemia. Já estávamos presos dentro de
nossas solidões e dentro dos nossos mundos. Será que o vírus disfarçou mais uma
vez a falta do abraço, a falta do outro que eu necessitava que me completasse?
Eu percebo que a solidão tem um novo motivo: o
isolamento. Alguns amigos voltaram para um novo normal. Mas percebo que nunca
mais seremos como antes.
Deito-me no sofá, ligo a televisão e mudo o canal, a
notícia se repete e nego-me a ouvir a mesma história. Decidi pôr o tênis, fazer
uma breve caminhada, senti o ar que eu desejava, mas lembrei da máscara. Ao
andar, vi as pessoas se deslocarem para os trabalhos deles e escutei o diálogo
de um casal, em que comentavam acerca da necessidade de se manterem distantes.
Continuei andando e pensando naquilo: no momento, o
qual mais precisamos de alguém, mas devemos nos afastar. Nessa contradição, a
vida continua.
Taiana
Lemos
Dona Luz sempre repetia: "quando aparecer um
deserto, atravesse. Sobreviver não é o sentido da vida e só".
Até o último instante os seus ensinamentos guiaram
tantas pessoas a aprender a sentir, a fruir a experiência de estar viva.
"Isso é caminho", dizia Dona Luz. Ela sempre
teve razão.
A gente se afasta da nossa essência cada vez que
reduzimos quem somos ao 'o que somos' - aos títulos, às posses, aos feitos
individualistas.
A vida privatizada, apropriação privada. Caminhar
assim não
não é sobre o viver porque sobrevivemos com o que
sobra do tempo da produtividade.
"A humanidade produz existências descartáveis
destruição e guerras
escravização
silenciamentos e morte"... dizia ela em um transe
febril de pulmões quase já paralisados. Insistia, com a força daquela última
lição:
"Morrem rios,
morrem árvores
Morrem espécie animais
Oceanos
Morte (à) flora. A vida morre. Não somos os únicos que
morremos, não. Mas parece que nos esquecemos..."
Dona Luz se foi e
ficamos nós
aqui,
seres sobreviventes.
Espécie pertencente a uma humanidade sem sentido.
Que não sente - só produz.
Uma subcategoria animal,
sem elo natural.
Cada vez mais distante do que era para ser
"Deserto atravessado".
Não há experiência - é vinculo quebrado
nem Sol, Montanhas, Rio, Mar
Nem b a r r o...
Adeus, Dona Luz.
Sthefane Souza
Tempos de pandemia, e presos dentro
de um apartamento, a vida a dois não estava sendo nada fácil. Brigas e
desentendimentos se faziam presente na vida de Jorje e Clarissa agora.
Lá estava ela, deitada ao lado do seu
marido, que agora parecia mais um desconhecido. Depois da briga há algumas
horas atrás, ela estava insone e só queria tirar o peso que estava sobre sua
cabeça.
Ergueu seu corpo da cama, e colocou
seus pés no chão gelado, o que lhe causou arrepios.
Foi até sua adega e pegou seu melhor vinho,
despejou o líquido em uma taça e deu um gole generoso, a fim de querer eliminar
a sensação ruim que estava sentindo.
Caminhou um pouco e parou para
observar uma foto do seu casamento, e como estava distraída se assustou quando
uma voz rouca soou atrás dela. Era o seu marido.
- O que está fazendo acordada?
Ela bebericou o vinho e se virou para
ele. Olhou-o, e procurou algo nos olhos esverdeados de Jorje.
- Quando descobriu?
Ele confuso, retrucou.
- Descobriu?
O quê?
- Que não me amava mais.
- Clarissa, eu não...
- Você não precisa fingir!
Deu um último gole na sua bebida e se
aproximou do seu marido. Ficou perto o suficiente para sentir a respiração um
do outro e tocou-lhe o rosto, enquanto ele permanecia imóvel.
Com a voz afetada, ele disse:
- Me perdoa.
Ela continuou o analisando, e por fim
disse:
- Você não precisa me pedir perdão.
Eu sinto muito por ter feito você aguentar por tanto tempo.
- Clarissa...
Ela inclinou-se e seus lábios tocaram
os de Jorje em um gesto lento. Parecia que o mundo a sua volta tinha parado com
os movimentos, e só existia eles dois. Acariciou o rosto do marido e partiu o
beijo.
- Eu sei que me amou até quando pôde,
sei também que não é sua culpa. Eu só quero que seja feliz, apenas seja feliz,
Jorje. Agora vá!
Ele assentiu e lhe deu um abraço
forte.
Jorje sabia que ela estava sofrendo,
mas também sabia que seria melhor para os dois acabar com a farsa que estava
machucando ambos.
Alguns minutos depois, ela o viu
saindo do quarto em que dormiu com ele por 10 anos, com as malas feitas. Eles
se olharam, e ela sorriu fraco.
- Se cuida.
Como doía saber que não ouviria mais
a sua voz.
- Adeus, Jorje!
Ela se virou. Não teve coragem de ver
ele partindo, mas soube que pela demora de ouvir a porta batendo, ele olhou
para trás. Mas agora não significava nada,
tinha acabado.
Ela permitiu que suas lágrimas
escapassem, deixando que sua dor saísse por elas.
Agora no seu apartamento só restava
os seus destroços, o vinho, e todo o amor que ainda sentia por Jorje.
Adrian
Santana
“Quando eu olho pra Deus, eu vejo o vazio
Quando eu olho pra Deus, enxergo um buraco de minhoca
Onde todos que chegam perto dele, são imediatamente
sugados
Sugadas as suas vidas, seus pensamentos, suas
singularidades, suas perspectivas.
E então, se tornam clones de Deus.”
Nilo Makori
Ao acordar, se olhou no espelho e viu outros iguais a
ele. Se lavou e trocou suas roupas, não as reconheceu, mas supôs serem suas.
Não reconheceu sua casa, nem sua rua, “eu moro aqui”.
Não sabia o que fazer no seu trabalho e ainda assim,
bateu a meta do dia.
Ao retornar para casa, não percebeu que eram os seus
pés que o guiavam e num instante se deparou em frente a um templo, mas ele não
sabia rezar e assim, conseguiu “pregar” a palavra e “libertou” almas.
Ao fim do culto, voltou para casa.
E antes de pegar no sono, orou mais uma vez para um
Deus que nunca conheceu, mas sabia bem como era, e pensou: “eu sou um filho de
Deus” e logo adormeceu.
Ao acordar, se olhou no espelho e viu outras iguais a
ela. Se lavou e trocou suas estranhas e familiares roupas, foi até a cozinha e
preparou o café, seu marido logo acordaria, precisava deixar tudo pronto para
que ele se alimentasse antes de ir trabalhar. Lavou a louça, arrumou a casa, a
sua casa, “eu moro aqui.”
Aquela rua, não parecia ser conhecida, mas ela não se
perdeu, pegou aquele desconhecido ônibus e desceu no desconhecido ponto.
Ao chegar na casa da patroa, se pôs a limpar, não
errou os cômodos, nem o que devia cozinhar. Não sabia nada e ainda assim, se
saiu bem, como de costume.
Ao fim do dia, não se sabe como, mas ela já estava no
templo, de joelho rezava a um Deus desconhecido, por pessoas desconhecidas, por
assuntos desconhecidos, que lhe eram conhecidos. Ao fim, cumprimentou a todos
os desconhecidos conhecidos e retornou ao seu lar.
Em casa, foi possuída por seu desconhecido marido e,
ao terminar, virou-se para o seu lado da cama e pensou: “sou filha de Deus” e
dormiu.
Ao acordar, se olhou no espelho e viu outros iguais a
ele...
Bira
Lemos
Cabelo e barba grandes, olhar perdido de quem não quer
acreditar, fogos de artifício, panelaços, era um carnaval de Veneza com
mascarados a desfilar. Sorrisos, abraços ainda reprimidos, beijos jogados de
longe, juras de amor e de que tudo vai mudar. Mudar!? Será que mudamos depois
de mais de ano de clausura com apenas trocas de palavras e algumas imagens pelo whats-App que, junto com a tv, nos enchiam de notícias
mostrando o descaso político, atritos, sarcasmo, fake news, lutas partidárias e nós em casa sem podermos
nos revelar, só com algumas mensagens nos grupos restritos. Será que vai mudar?
Nada vai mudar se você não muda. Para mudarmos,
primeiro se faz necessário uma autoanalise e, para não se iludir, resolveu ir
até a barbearia mais próxima e começar pela mudança exterior para ver o que
sobrava do seu interior.
Chegou em casa e depois de minutos em frente ao
espelho em busca do seu eu antigo teve a certeza de que ele não mais existia,
era outra pessoa, sentia vontade de abraçar o mundo, de ajudar o próximo , de
carregar crianças sem a demagogia política e acreditou que mesmo infimamente as
pessoas mudaram e para os que não conseguiram sair do meio passo lhe restou a
esperança tão bendita e bem dita por
Mario "eles passarão e eu passarinho".
Oluwa
Seyi
Desde a infância, a vida, através da voz das pessoas,
exigia à Lara que olhasse apenas para a frente. Se não encarasse a lousa da
sala durante as aulas, era advertida; se não estivesse atenta às pedras
enquanto andava, podia tropeçar e cair. Era só quando viajava com os pais, no
banco traseiro do carro, que podia gastar seu tempo fazendo o que mais lhe
aprazia: olhar para trás. Para ela, as estradas de mão dupla é que faziam
sentido porque era possível seguir em qualquer direção e tudo bem.
Quando a menina disse isso aos pais, foi repreendida.
"Onde já se viu andar em qualquer sentido? É pra frente que se anda,
Lara!"
Aos outros, a convicção da menina parecia quase
perigosa: aqueles que olham demais para trás acabam tendo pouco tempo para
cuidar do que vem à frente. "Quem protege os passos das pessoas quem se
perdem olhando a vista?"
Um pedaço da menina morreu ao perceber que seu jeito
de ver o mundo era inaceitável. Ainda criança, Lara se convencia a não mais
compartilhar com os outros aquela ideia despropositada. No entanto, a ideia
despropositada nunca lhe saiu da cabeça. A ideia despropositada era parte do
brilho que Lara possuía. Por muito tempo, ela fingiu aceitar e compreender a
obrigatoriedade do futuro, do norte como regra, do sentido único, mas sua
essência não cabia em limitações tão pequenas.
Lara cresceu, e junto com ela se agigantou a
necessidade de nunca mais caminhar em sentidos que não a convidavam. Quase num
sinal de rebeldia, passou a imaginar outras vidas que seguissem rumos que o
coração escolhe: para frente, para trás, em círculos, para dentro. Lara
forjou-se escritora e ressuscitou em si o pedaço que morrera. Escrever, para
ela, tem sido não precisar olhar obrigatoriamente num sentido só.
E desde então, nenhum pedacinho de Lara pôde morrer.
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