SOBRE NUVENS E OLHARES – IMPRESSÕES E OLHARES COTIDIANOS - EXPERIMENTO 3
No nosso encontro da última quarta-feira começamos a falar
sobre as impressões do conto de Aleilton Fonseca – O Sabor das Nuvens. Conversamos sobre gerações, sobre relações
simbólicas, sonhos e vontades. Aleilton traz na sua escrita narrativas sensórias,
descrevendo cheiros, sabores, desejos e vontades.
Aleilton apresenta através da sua narrativa uma descrição
bem imagética de uma fábrica abandonada, descrevendo o cenário de maneira
cuidadosa para possamos ter na nossa leitura a visualização desse cenário. A
fábrica de biscoitos por vezes assume papel de personagem, apresentando uma
vida desde o seu auge, quando funcionava a pleno vapor na produção de
biscoitos, até a sua decadência, quando se desfaz em ruínas, e dessa maneira dialoga
com o nosso as memórias do homem, do menino e do velho.
As diferentes maneiras de como lemos e sentimos um mesmo texto é ponto de interesse para que a gente perceba como é diverso nossos olhares. Como podemos ter múltiplos percepções partindo de um mesmo ponto de referência.
Sobre esse encontro o nosso colega Ubirajara escreveu um poema:
O cheiro cálido de biscoito
Me fez regressar á juventude
Quando passava por alí
Barros Reis, Fabrica de Biscoitos Tupy
Já á distancia
As narinas se abriam
Acompanhadas pela meninas
Dos olhos da infância
Com as fragrâncias
Que a fabrica produzia e
Esperando o reconhecimento da fachada
Com seus losangos em combogos
E ao passar, a memória
Queria a fabrica adentrar
Para descobrir os conceitos
De como eram feitas
Delicias de seculares receitas
De rosquinhas de coco, de chocolate
Biscoitos de leite, recheados
Maizena, Maria
Água e Sal, Cream Cracker
Crocantes e tostados
E uns pequenininhos
Que chamava de coquinho
As bolachas
Que atendiam aos pobres
Com as quebradas
E as latas?
Tão bem arrumadas
Com papeis brancos
Em sanfonas e
Em cada pilha uma delicia
Que enchiam os olhos
A na boca os sabores
Até chega o lanche do outro dia
03.02.2021
UDL
Na segunda parte do encontro, foi proposto um experimento
chamado OLHARES COTIDIANOS, em que a pessoa tem que observar o ambiente ao seu
redor, escolher um elemento (mesa, espelho, objeto, algum espaço do lugar) e
escrever um conto relacionando esse elemento a um tema que é: Memória. Foi colocado
um tempo de 10 minutos – 5 para observar e escolher o elemento, e 5 minutos
para escrever o conto, observando estrutura de conflito, tempo, narrador,
personagem e espaço.
Esse experimento foi ainda mais interessante dentro dessa
dinâmica de oficina on-line. Nossa distanciamento físico e geográfico não foi
impeditivo para que a gente experimentasse e trocasse memórias, afetos e
histórias, colocando nosso universo artístico e literário como meio de
expressão.
O experimento OLHARES COTIDIANOS pretende justamente ter como
caminho o extra cotidiano presenta nas coisas comuns que nos cercam dia a dia.
Naquilo que se faz presente rotineiramente, mas que ganha contornos de mistério
e mágico quando transformamos em narrativa, colocamos em evidência.
Abaixo segue o resultado dessa experiência, marcada pelo
texto e pela foto que cada participante tirou de onde estava naquele momento:
EXPERIMENTO 3 - OLHARES COTIDIANOS
Emaranhado
O ser humano é engraçado. Sempre deseja, almeja algo que, nem
sempre ou quase sempre, não consegue alcançar. Quem nunca sonhou em passar mais
tempo em casa? Quem nunca imaginou como seria perfeito trabalhar sem precisar
de deslocar-se? Pois é, eu sonhava com isso. ÔÔÔ ser inconstante, confuso!
Eu falo isso porque acordava às 6h, nem dava tempo de tomar
um cafezinho pois, se perdesse o ônibus das 6:25, chegaria no trabalho depois
do horário de bater o ponto. E isso é verdade porque já peguei o das 6 e 30 e só
cheguei no trabalho quase às 9 horas.
Deixava para comer mais perto do destino. Ônibus lotado, pois
do São Rafael para o Centro da cidade, é um caminho longo e cheio de paradas.
Em pé, apertada, ou sentada, o que era um milagre, ficava a viagem toda a imaginar
a vida de cada um dentro do buzu! Hoje penso que, apesar de não nos
conhecermos, fazemos parte um da vida do outro. Era um emaranhado de vidas que
influenciam nos destinos umas das outras.
Vem a pandemia, e com ela, a oportunidade de realizar o meu desejo
de trabalhar em casa, em home office (está na moda). Êbaaa, nada mais de gastar
dinheiro com transporte, com o café na rua mas também de ver as pessoas, que se
emaranhavam com a minha vida. E, aqui em casa, na frente do computador e do
celular, percebo que sinto falta. Ah!! Como gostaria de me apertar no ônibus de
novo, de me enroscar e aglomerar.
Percebo também, que os únicos emaranhados e entrelaçamentos
que vejo em meu cotidiano, são os dos fios do computador. O meio de
socialização que, como já matutei antes, não sei se realmente aproxima ou
afasta.
Como sou inconstante e insaciável em minha busca de já não
sei mais o quê!!!!!!
Tatiana Aranha dos Santos 03/02/2021
Luminária
Meu apartamento mora em mim, não o contrário. É um pedaço do
meu coração fora do corpo. Preparar mudança, olhar pela última vez pela
varanda, devolver as chaves... Como se despedir de uma parte do órgão que
bombeia meu sangue? Me parece suicida.
Desde o dia em que eu soube que precisaria partir, o sol se
rebelou e o céu, impassível, permaneceu nublado. Desde o dia em que eu soube
que precisava partir, não pude mais deixar as lâmpadas apagadas, nem mesmo essa
luminária de luz fraca, amarelenta. Quando entrei pela primeira vez nesses 60
metros quadrados, eu podia jurar: achei meu pedaço no mundo. Gostei de tudo,
menos da luminária que, no apartamento lindo e vazio, era a única presença
feia.
Pensei em tirá-la dali. O que as visitas pensariam? Eu não
queria ser cúmplice daquele gosto terrível.
No fim das contas ela ficou. Iluminou jantares, madrugadas
de escrita, brigas, lágrimas. Essa luminária
que foi minha cúmplice. ..
Sentada sob essa luz fraca, amarelenta, faço conjecturas.
Posso até preparar mudança, olhar pela última vez pela varanda, devolver as
chaves, mas levo a luminária comigo.
Oluwa
[Tempus Fugit]
Estava ali olhando pra mim, grudado na parede, como quem
escolhe escorrer por entre os barrocos cantos milhares de iluminuras,
emoldurando o tempo como quem diz: "aqui jaz o passado, o presente e o
futuro".
Fiquei horas contemplando sua majestosa figura, partilhando
sua circunferência com o ciclo da vida, vendo a manhã crescer tarde e
amadurecer noite por vários dias, e os resultados dos minutos encrustando-se em
todas as superfícies do espaço.
De fronte, vejo minha mãe, e a mãe dela, e tantas outras
eras que nem sei os nomes, ou dizer o que em mim partilham. Observo cada curva
e cada entorno, cada detalhe meio fosco de existência vítrea, fragmentos
pequenos que só podem ser observados um pouquinho de cada vez. A ampulheta cósmica
de poeira estelar que enquadra o meu olhar então me estala para o chamado do
agora: já é hora de me despedir do espelho.
Lara de Paula
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